Cronica sobre o dia dos professores, escrita pelo meu grande amigo e professor de língua portuguesa da Escola Tsuya, Ubiratan, mais conhecido como Bira.
15/10 Dia do Professor
É quarta-feira e acabei de fazer
exames do coração no Instituto INCOR e aproveito o pouco tempo que tenho para
escrever, às vésperas do meu dia, ou melhor, do dia de todos os professores do
Brasil, alguma coisa que me aconteceu há alguns anos, numa cidade onde morei.
Era
manhã e chovera a noite toda. Toca o celular. Bêbado de sono supus que tivesse
esquecido de desligar a função de despertador. Mas, não! Era um telefonema
realmente. Meus pais me ligando. Minha mãe, a primeira a falar, esperava que eu
já estivesse desperto e me aprontando para as aulas do dia, mas eu
inescrupulosamente rompi dizendo que não trabalharia porque era 15 de outubro.
Ela sabendo, nem senti efeito nenhum em sua voz, cumprimentou-me e deixou uma
frase que talvez nesses poucos anos de professor eu nunca tinha ouvido dela: “é
linda a profissão que você exerce, meu filho”. Eu agradeci. O velho foi rápido
ao dizer que esperava que eu voltasse logo. Mesmo assim ficou um paradoxo na
minha cabeça. Todas as vezes que vou visitá-los, uma vez ao mês (até gostaria
de ir mais, mas o dinheiro é exíguo), calha uma conversa sobre os tempos
difíceis, a falta de dinheiro, as injustiças sociais, e no fim, ao invés de
acabar em pizza nossas conversas, elas pendem para o lado de minha
profissão. E meus familiares, com aquele aspecto de quem dá de ombros e
franze o sobrolho e a testa juntos, soltam uma daquelas frases que ninguém
gosta de ouvir porque é a pura verdade: “é, meu irmão, você precisa mudar de
profissão...” Essa frase dói, cria ecos, é contagiosa e também veste uma
roupagem suave, mas produz o mesmo impacto quando bate nos tímpanos da
consciência.
A pura verdade é que meu pai me acha
um desperdício. Para ele sou uma espécie de promessa que não vingou. Filho
caçula, fui sempre o adulado e o que ficou a maior parte do tempo se dedicando
aos estudos enquanto os outros dois mais velho aos 18 anos já estavam em São
Paulo comendo “o pão que o Diabo amassou”.
Pouco a pouco tenho me convencido.
Muitas vezes abaixo a cabeça e se me perguntam qual a minha ocupação, já
perdido o orgulho de dizer professor com a boca cheia, falo baixo, quase
inaudível, desconverso ou falo algo genérico como: “sou funcionário público”.
Nunca vi profissão tão imprescindível
e tão desnecessária. Todo político hasteia as três bandeiras da campanha:
Saúde, Educação e Segurança. Mas são tão tolos que ainda não descobriram que
educação não dá voto. É mais fácil ele dizer que vai acabar com as escolas e o
dinheiro vai aplicar em Estádios, Festas, Exposições Agroindustriais, fomentar
a indústria dos shows, levar a Ivete Sangalo a todas as cidades do Brasil,
fazer Brazilian Day em Copacabana, ou em Manaus, construir praças, parques,
motéis e tudo quanto há de ideias idiotas. Por que se preocupar com a educação?
É só um gasto! Maldito Art. 6º da Constituição Federal de 1988 que nos garante
a educação, és tu que me asseguras o emprego, és tu que me fazes mesquinho.
Se não houvesse escola nesse país só
meia dúzia brigaria pelas ruas e protestaria com efeitos ínfimos. Prova disso
são nossas greves. Perdemos até para os Correios! Cruzaram os braços e pararam
de entregar as encomendas. A imprensa, que é uma geladeira, funcionou e deu as
caras. Vai ver que necessitam mais de um carteiro do que de um professor. Entre
os policiais Civis e Militares, que ganham uma merreca a mais do que nós,
porque o risco de levarem um tiro, não vejo tanta diferença, é muito maior do
que o nosso. Tudo isto dá até na imprensa. A verdade é que precisam mais de um
policial do que de um professor.
Tenho percebido que possuo traumas.
De hora em hora bate um sinal em meu cérebro e meus olhos percorrem o pátio da
escola. As salas batem as portas e os alunos cantam em coro: “ Ah...! Por que
você veio?”. Logo me acomete o mal da Visão do Insuportável. Nunca vi alguém
que passe a noite toda assistindo à TV valer mais que eu. Nunca vi um simples
abrir e fechar de portões valer mais que eu. Nunca vi um braço esquerdo de
diretor valer mais que eu. Honestamente me tenho achado insuportável. Menos brincalhão,
mais taciturno, severamente intolerante. Discuto com fanáticos, adictos,
santos, sábios e cretinos, com corrompidos do sistema, com os que nunca vão
entender o que escrevo, com os que não se entendem, com os que amo e com os que
me acham fanático, cretino e enfadonho. O que aprendo é que a perspectiva é um
ponto longe a ser atingido por um barco.
Campeões de desilusões, buscamos as
saídas mais próximas ou até mais longínquas possíveis. Apelamos para médicos,
abonadas, justificadas, injustificadas e licenças-saúde. Golpes baixos são
aceitáveis. Procurar acomodações, readaptar-se, cruzar as pernas e ficar a
envelhecer no pátio de uma escola é levantar o troféu do futuro mais impostor.
Eu não consigo acreditar que chegamos a 2015.
Somos mendigos do trabalho docente.
Qualquer feriado é a uma bênção. Conseguir uma boca na diretoria é um
privilégio. Readaptar-se é dádiva. Ser professor sem dar aula, ou sair da sala
de aula, é uma glória. Mas eu, covarde e traumático, tolo e inoportuno, preferi
ser um objeto de preterição, irascível de mim. Por isso sou azedo e
bilioso. Não encontro razões para escrever esse artigo que seja o motivo
algo que escreva para mim mesmo, ou para ninguém, só por desabafo. Pode ser que
alguém perceba nas entrelinhas a latência de uma inveja, mas eu confirmo e
faço-a patente. Sinto inveja dos que estudaram pouco e são muito mais do que
eu. Invejo os que trabalham pouco e ganham demais, invejo os que não trabalham
e ganham muito. Invejo os que trabalham bem e de bem. Invejo os trabalhos que
fazem falta se realmente não existissem. Sinto um profundo desconforto quando
percebo no fundo do meu coração que se um dia eu parar, ficar louco, inválido
ou morrer, a vida continuará a mesma ou até ficará melhor.
Meus pais e meus familiares pouco
sabem das angústias que estas pequenas coisas causam. Sinto-me pulsar as veias
quando penso nas escolas e nas agruras cometidas contra nós.
É fim de tarde, nesta quarta-feira
prudentina. Entre um Sol que arde e quase 40 graus de sensação térmica infernal,
encerro esta minha crônica nefasta e plena de desabafos.
Feliz dia dos professores. Se é que
existam professores, ou até por que não, um pouco de felicidade.
Prof. Bira